domingo, 24 de junho de 2007

Olissipografia 29








A Rua Áurea sempre foi das mais barulhentas de Lisboa. Hoje em dia, com o eléctrico desaparecido, transformou-se numa via rápida, em prejuízo dos transeuntes. Não obstante, as recordações e memórias que me são transmitidas por quem lá passou e passa não param de me espantar.

Quem não teve alguém na família que exercesse advocacia que não tivesse (e ainda pode ter) um gabinete (em escritórios comuns) arrendado nos prédios da Rua do Ouro? Os andares eram (e são) exíguos, as escadas de acesso escuras, as entradas invariavelmente lojas, dos mais variados ramos de negócio (desde a pastelaria, passando pela ourivesaria, obviamente, até à retrosaria e papelaria).

A rua esteve sempre dividida em duas partes: a parte de baixo, perto do rio, fortemente financeira (com a excepção do Montepio, mais acima), a parte de cima, do comércio e dos causídicos (que abundavam pela proximidade do Tribunal da Boa-Hora e dos seus célebres calabouços).


E quem se recorda da vida, recorda-se da morte. Daqueles profissionais que lutaram nos seus gabinetes até não terem mais forças. Um dos meus tios recorda um colega seu que caíu da sua secretária, num dia normal de trabalho e foi descoberto alguns dias mais tarde, já cadáver. Outro ainda fala-me do causídico que recebia, a horas tardias, clientes femininas no seu gabinete, saindo invariavelmente com um sorriso nos lábios. No 178, vejo um cliente, descontente com a resolução do seu caso em Tribunal, com um revólver na mão apontado para o advogado que, esprituosamente, gritou "atira para o umbigo, pois já tem o buraco feito" (escusado será dizer que o sujeito armado retirou-se, aparvalhado, perante o dito acto de "bravura").

A azáfama da baixa que ainda hoje sentimos (só até às sete da tarde), teria sido maior nos inícios do século XX?

2 comentários:

Bic Laranja disse...

Bonita evocação da Rua do Ouro. Cumpts.

Jansenista disse...

Bela evocação, que me apela ao sentimento por mais de uma razão.